O foro privilegiado, ou foro por prerrogativa de função, voltou ao centro do debate político no Brasil após a recente crise entre Congresso e STF. A tensão foi agravada por decisões do ministro Alexandre de Moraes, que impôs medidas restritivas ao ex-presidente Jair Bolsonaro em investigações sobre participação em atos antidemocráticos, ataques ao sistema eleitoral e ameaças às instituições. Após descumprimento dessas medidas, Moraes determinou sua prisão domiciliar, intensificando o embate entre os poderes.
As ações de Moraes contra Bolsonaro mobilizaram a cúpula bolsonarista, que reagiu rapidamente no Congresso com manifestações e articulações. Como parte do chamado “pacote da paz”, parlamentares alinhados ao ex-presidente priorizaram o foro privilegiado, visto como mecanismo estratégico para proteger autoridades e definir em quais instâncias elas podem ser julgadas.
Aliados do ex-presidente aproveitaram o momento para intensificar a discussão e apresentar propostas que visam alterar o foro privilegiado, com o objetivo principal de restringir o alcance do STF no julgamento de parlamentares e de outras autoridades.
Criado para proteger a Justiça e garantir imparcialidade, o foro privilegiado hoje é usado como barganha para interesses políticos. Para analisar o tema, o PontoPoder ouviu os especialistas André Alencar dos Santos e Magno Carl.
O que é o foro privilegiado?
André Alencar dos Santos explica que o foro especial foi criado para proteger a Justiça e garantir imparcialidade, permitindo que autoridades de cargos de prestígio fossem julgadas por instâncias superiores.
No entanto, o professor aponta que, "o STF, principalmente, utilizava o foro especial como forma de pressão e forma de manter os parlamentares sob 'sequestro', há vários processos que ficam anos parados, mas se um desses réus se envolve em disputas do interesse da Corte, a Corte tem essa 'carta na manga' para utilizar, tanto como instrumento de pressão como forma de manter um certo controle sobre as autoridades públicas (legislativas, executivas e até judiciárias)".
Magno Carl define o foro privilegiado como a regra que leva o julgamento de certas autoridades por crimes comuns diretamente ao STF ou STJ. Ele lembra que, após restrições em 2018 para crimes ligados ao mandato, o STF voltou a ampliar seu alcance, mantendo casos mesmo após o fim do mandato, reacendendo o embate com o Congresso.
Histórico das tentativas de mudança
André Alencar afirma que alterar o foro privilegiado é complexo, pois as mudanças recentes vieram principalmente de decisões do STF. Pelo Congresso, poucas alterações ocorreram via PEC, sendo a mais relevante a Reforma do Judiciário de 2004, que ajustou competências do STF sem grandes mudanças no foro.
A PEC 333/2017, aprovada pelo Senado, propõe extinguir o foro privilegiado para quase todas as autoridades, transferindo julgamentos para instâncias comuns. Magno Carl destaca que o fim do foro é apoiado por organizações civis e grupos políticos, lembrando que, apesar de aval da CCJ da Câmara em 2017, a proposta travou no Plenário e foi retomada recentemente pela oposição e centrão após o motim no Congresso.
Quantas autoridades têm foro privilegiado e como isso se compara a outros países?
André Alencar afirma que o foro especial no Brasil é excessivo, abrangendo centenas de autoridades no STF, como parlamentares, ministros, chefes das Forças Armadas e membros de tribunais superiores, o que, segundo ele, é muito além do padrão de outros países com sistemas semelhantes.
Quais mudanças os aliados de Bolsonaro querem aprovar?
André Alencar aponta que bolsonaristas querem retirar do STF a competência para julgar parlamentares, visando restaurar a independência do Legislativo, hoje submisso ao Judiciário. Magno Carl avalia que o movimento é reativo à prisão domiciliar de Bolsonaro e a inquéritos no STF, funcionando como pressão política e barganha na Câmara. Segundo ele, o objetivo não é acabar com privilégios, mas tirar do Supremo o poder de julgá-los, reduzindo a pressão sobre políticos.
Impactos práticos das mudanças
André Alencar afirma que, com as mudanças, processos de autoridades iriam para a primeira instância, permitindo aos juízes locais reavaliar procedimentos e decisões antes tomadas pelo STF. Magno Carl acrescenta que a PEC faria prisões e medidas contra parlamentares dependerem de aprovação do Plenário das Casas, impactando cautelares já em andamento, e que a transição de foro geraria disputas sobre o que e quando passaria à 1ª instância.
Riscos para a democracia e a Justiça
André Alencar chama atenção para possíveis problemas:
- "Os juízes de primeiro grau podem ter maior constrangimento em julgar altas autoridades."
- "Há riscos muito maiores de prescrição, porque os réus poderão usar da lentidão da justiça e de excessos de mecanismos de defesa."
- "Um mesmo tipo de autoridade pode ser julgada por centenas de juízes diferentes, o que traria maior insegurança e risco de 'loteria' judicial."
Magno Carl prevê forte reação da sociedade e do Judiciário, lembrando que, em 2021, a “PEC da Imunidade” foi chamada de “PEC da impunidade”, recebeu críticas do STF e da magistratura, além de ajustes sugeridos pela PGR, podendo gerar novo atrito institucional e mobilização popular.
Fonte: DN