Em meados de 2015, Eliseuda Ferreira, moradora de Fortaleza, Ceará, levava uma gestação tranquila até que, no quarto mês, começou a apresentar sintomas de uma virose ainda desconhecida: manchas vermelhas no corpo, febre, diarreia, infecção intestinal e urinária, tosse e vômitos. O diagnóstico era de infecção pelo vírus Zika, uma doença transmitia pelo mosquito Aedes aegypti – o mesmo da dengue.
No pré-natal e em atendimentos de emergência, ela explicou para os médicos a situação, questionou sobre possíveis riscos – mas, até então, nem eles sabiam. Quando Lara Sofia nasceu, veio a surpresa: perímetro cefálico diminuído, diagnóstico de microcefalia, o que tempos depois foi comprovada a associação com o vírus, portanto, Síndrome Congênita do Zika Vírus (SCZ).
Os primeiros bebês nascidos com a Síndrome Congênita do Zika Vírus (SCZ) estão próximos ou já completaram uma década de vida, e seguem enfrentando desafios, principalmente a invisibilidade. Nesta reportagem especial, o Diário do Nordeste traz um panorama da vida dessas crianças nesses 10 anos após a epidemia.
"O médico pediu os exames e ele disse que a Zika tinha afetado a neném e deu o máximo de 6 meses de vida para ela [...] Eu olhei para ele e só disse assim: "Não, ela vai passar dos 6 meses e eu vou trazer ela com 3 anos para você ver o que é ter uma mãe e o que é essa mulher de fé", afirma.
Lara Sofia foi a primeira bebê a nascer com a Síndrome Congênita do Zika Vírus (SCZ) no Hospital Distrital Gonzaga Mota, do bairro Prefeito José Walter, em 21 de janeiro de 2016.
Entre 2015 e 2017, o Ceará e outros estados do Nordeste enfrentaram uma epidemia do Zika Vírus. Naquela época, o cenário era de incertezas tanto para as famílias quanto para a Medicina.
Desde o início da emergência em saúde pública até hoje, 3.472 casos da doença foram confirmados no Estado, sendo 254 em gestantes. Os dados são do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, levantados pelo Diário do Nordeste.
Em relação à SCZ, 177 casos foram confirmados de 2015 a 2018, último ano em que houve registro de casos de microcefalia associados ao Zika vírus no Estado.
Eliseuda cumpriu o que tinha dito ao médico e, quando Lara tinha 3 anos e 6 meses, foi até o Hospital do José Walter. “Eu disse assim: ‘lembra da bebezinha que você falou? Tá aqui ela. Nunca diga isso para uma mãe porque o senhor nunca sabe o tamanho da fé que a gente carrega”, diz.
Com 9 anos, Lara Sofia é atendida no Núcleo de Tratamento e Estimulação Precoce (Nutep), ofertado no Complexo Hospitalar da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC). Lá, ela é assistida por neurologistas e pediatras, e realiza fisioterapia, fonoterapia e terapia ocupacional.
“O Nutep é onde a gente encontra acolhimento. Logo nos primeiros meses, a gente tinha psicólogo para ser acompanhada, ajudando para as mães não entrarem em depressão”, diz a mãe.
Com mais de 30 anos de existência, o Nutep foi criado em 1937 para acolher recém-nascidos de alto risco, oriundos em maioria da Maternidade Escola Assis Chateaubriand (Meac). A instituição já recebia bebês atingidos pela microcefalia causada por citomegalovírus, toxoplasmose ou outros agentes infecciosos.
“Hoje o Nutep continua estimulando, com o apoio da família que é fundamental, mas algumas áreas dessas crianças já estão muito comprometidas e não serão mais recuperadas”
Lucivan Miranda
médico neuropediatra e presidente da instituição
Em 2015, a diferença se deu no crescimento inusitado de casos e na gravidade com que se apresentavam. Muitas crianças tinham sérios comprometimentos neurológicos e outros agravos nunca vistos pelos próprios médicos. Atualmente, segundo o presidente, 13 crianças são atendidas na instituição e a maioria está com 9 anos.
O profissional é um dos responsáveis por assistir Sofia e, para a mãe, o prognóstico do médico foi essencial para esclarecer as dúvidas dela. “Na primeira vez, ele olhou para mim e disse: ‘olha, mãe, a Lara Sofia não vai andar, nem falar. Ela vai interagir do jeito dela, mas para andar e falar, você vai ser as pernas e a boca dela’. E realmente tudo que ele falou, se cumpriu”, diz.
A mãe conta que Lara Sofia interagia bem com as pessoas, gostava de engatinhar, correr e passear. “Ela conhecia o barulho dos ônibus, reconhecia até os motoristas pela voz”, afirma. No entanto, a menina ativa acabou enfrentando internações que deixaram sequelas.
Em 2023, entrou no hospital com pneumonia silenciosa, apresentando febre e tosse secretiva, que gerou um quadro infeccioso de bronco aspiração. Por isso, precisou realizar a cirurgia de correção de refluxo e gastrostomia (GTT), procedimento que insere uma sonda diretamente no estômago para a alimentação.
A tensão cresceu ainda mais quando, logo após a cirurgia, Lara Sofia positivou para a Covid-19 e ficou com 90% dos pulmões comprometidos. “A médica que estava acompanhando ela no hospital olhou para mim e disse que ia fazer o possível para ela sair com vida, porém não dava a certeza que ela voltava para casa”, relata a mãe. Foram 49 dias até a alta hospitalar.
Dois anos depois, em maio de 2025, Lara voltou a ser internada por uma infecção na GTT, caso que chegou a perfurar o estômago. Foram mais 24 dias de aflição da família. “Depois dessas internações, ela ficou muito debilitada. Não é mais a Lara que era ativa”, relembra Eliseuda.
Agora, Lara precisará fazer uma cirurgia para escoliose e vem enfrentando problemas na respiração. Segundo a mãe, “tudo indica que ela vai precisar fazer a traqueostomia”, um procedimento cirúrgico que cria uma abertura na traqueia que permite a entrada de ar diretamente nos pulmões. Lara também apresenta quadros de apneia do sono, um distúrbio no qual a respiração para durante o repouso.
‘NO INÍCIO, ÉRAMOS VISTOS’
Em 2015, a estudante de Recursos Humanos Tamires Passos estava no primeiro trimestre da gestação do primeiro filho, quando foi infectada pelo Zika vírus. A doença foi tratada como uma simples virose. “Não tinha nenhuma ligação de que isso poderia causar qualquer dano para a criança. Eu só soube quando Miguel nasceu [com microcefalia]”, relata.
No primeiro momento, Miguel respondeu aos estímulos, chorou e com 24 horas de nascido foi para casa. Foi a ginecologista de Tamires que sugeriu que ela investigasse mais a fundo a condição de Miguel. Com 15 dias de nascido, ele fez uma tomografia que detectou calcificações em áreas do cérebro, confirmando a Síndrome Congênita do Zika Vírus (SCZ).
Tamires tinha 24 anos, estava prestes a se formar na faculdade e já trabalhava na área. O desejo, de início, era retomar a faculdade assim que o filho crescesse e dependesse menos dela. Mas o que aconteceu foi o contrário.
"A gente caiu no mundo todo novo, cheio de lutas novas e eu não consegui voltar para o mercado de trabalho até hoje", diz. Ela afirma que tentou retomar por diversas vezes durante esses 10 anos, mas sempre surgia um contratempo com Miguel.
Desde então, ela se dedica integralmente a cuidar do único filho, com o suporte emocional e financeiro do esposo, Jairo Dávila. Além disso, ela conta com a rede de apoio de toda a família.
"No início, nós éramos muito vistos. Todo mundo queria estudar nossos filhos, fazer exames neles. Era meio que a galinha dos ovos de ouro. Mas o tempo foi passando, e a invisibilidade foi acontecendo. Durante esses 10 anos, a gente sofreu com falta de médicos e dificuldade para conseguir as medicações"
Tamires Passos
mãe de Miguel, 9 anos
Para Luciana Martins Arrais, presidente do coletivo de mães de crianças com SCZ, foram 10 anos de invisibilidade, e as conquistas só vieram com a luta por direitos. Aos 39 anos, ela está à frente da Unizika, uma organização sem fins lucrativos que defende a vida de 1.589 crianças em todo Brasil.
“É como se os nossos filhos tivessem existido ali durante a emergência em saúde pública, e de lá para cá não existem mais. E nós estamos aqui. Nós precisamos ser vistos. Nós precisamos ser lembrados”, afirma.
Moradora de Apuiarés, a 122 km de Fortaleza, Luciana é mãe de Dandara Lia, de 19 anos, e Ana Lis, 9. Foi na segunda gestação que o diagnóstico de Síndrome Congênita do Zika chegou à família. “Eu tive sintomas de zika, manchas vermelhas e febre baixa, logo com 10 ou 11 semanas, mas na época ninguém sabia ainda da história da microcefalia, não existia essa ligação ainda”, explica.
A confirmação da SCZ de Ana Lis veio ainda na gravidez, no final de 2015, quando os casos estavam crescendo cada vez mais em Pernambuco. “No primeiro momento foi um susto, não sabíamos o que era microcefalia, como minha filha ia nascer, quais eram as perspectivas de vida dela e o que ela ia precisar”, relata.
Diante disso, Luciana acabou unindo dor e necessidade em luta, e se tornou referência no Brasil e no Estado como mobilizadora pela causa de famílias e de crianças com microcefalia associada à zika. O avanço da idade das crianças com SCZ tem trazido mais complicações médicas e funcionais. “Ao invés de eles virem evoluindo de alguma forma, eles vão piorando. As demandas deles não diminuem, só aumentam. Tem criança que começou se alimentando via oral e termina precisando de uma GTT [gastrostomia]”, fala.
Miguel, filho de Tamires, é uma dessas crianças que teve que mudar a forma de alimentação. A decisão por essa nutrição partiu dos responsáveis, orientados pelos médicos, devido à dificuldade de engolir, chamada disfagia. “Ele ainda conseguia se alimentar pela boca, mas por segurança a gente optou por fazer a GTT”, afirma a mãe.
Apesar das necessidades de uma criança atípica, Miguel é um menino ativo, que ama o carinho da mãe e da avó, e muito apegado ao pai. “Ele gosta de assistir desenho, ouvir música e é apaixonado pelo pai [...] Se ele gosta de uma pessoa e a pessoa está aqui próximo e não está falando com ele, ele grita, tipo: "Ei, não está me vendo aqui não? Eu estou aqui, fale comigo", diz Tamires.
Segundo o Ministério da Saúde, a Síndrome Congênita associada à infecção pelo vírus Zika (SCZ) compreende um conjunto de anomalias congênitas que podem incluir alterações visuais, auditivas e neuropsicomotoras que ocorrem em embriões ou fetos expostos à infecção pelo vírus Zika durante a gestação.
Entre as anomalias da SCZ, está a microcefalia, caracterizada pela redução do perímetro cefálico. Ou seja, o cérebro não se desenvolve de maneira adequada. Pessoas com microcefalia podem apresentar outros diagnósticos, a exemplo da epilepsia, paralisia cerebral, retardo no desenvolvimento cognitivo, motor e fala, além de problemas de visão e audição.
Crianças com SCZ devem ser acompanhadas por uma equipe multiprofissional que, a depender da necessidade de cada caso, pode incluir pediatras, fonoaudiólogos, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, neurologistas, oftalmologistas, otorrinolaringologistas, entre outros.
Quanto mais cedo as terapias forem iniciadas, melhor. É a chamada estimulação precoce que, se realizada desde o nascimento até os três anos, favorece o desenvolvimento de fatores prejudicados pela microcefalia, como o crescimento físico e a maturação neurológica.
Isso acontece devido à neuroplasticidade, conceito explicado pelo médico neuropediatra Lucivan Miranda. "Até determinada idade, o cérebro é plástico. Isso significa que se ele for trabalhado, estimulado precocemente, a gente pode conseguir uma recuperação parcial", diz. Logo, se uma criança é estimulada ainda nos primeiros anos de vida, ela pode recuperar funções que poderiam ser perdidas definitivamente.
Miguel, Lara Sofia e Ana Lis não frequentam a escola. Eliseuda chegou a procurar uma creche para matricular Lara, quando ela tinha 3 anos, mas ouviu de profissionais que não havia cuidadores para a criança. Já Tamires relata receio pelas muitas demandas de Miguel. "A gente teria que brigar para conseguir um cuidador, que pode não conseguir dar conta de tudo que ele precisa", explica Tamires.
Segundo Luciana Arrais, muitas mães insistiram e procuraram colocar as crianças em creches e escolas, uma vez que elas têm o direito de frequentar as aulas, e os municípios têm a obrigação de manter um cuidador para elas. Porém, assim como Tamires, a preocupação de deixar os filhos com outras pessoas é maior.
A Secretaria de Educação do Ceará (Seduc) informou, em nota, que não há alunos com microcefalia matriculados na rede pública estadual. Já na rede municipal, a Secretaria de Educação de Fortaleza (SME) detalhou que, atualmente, existem oito crianças com microcefalia com idades entre 8 e 9 anos matriculadas em creches e escolas da cidade.
Esses alunos são acompanhados pelo Atendimento Educacional Especializado (AEE) das unidades escolares da rede municipal. O objetivo do AEE é “identificar, elaborar e organizar recursos pedagógicos e de acessibilidade que eliminem as barreiras para a plena participação dos estudantes”. Além disso, os estudantes são assistidos por profissionais de apoio nas atividades de alimentação, higienização e locomoção, segundo a SME.
LIÇÕES DO PASSADO E DO PRESENTE
Neste ano, até maio, o Ceará não registrou casos de zika, segundo dados da Sesa. A capital Fortaleza também não notifica ocorrências causadas pelo vírus desde 2021, conforme informou a Secretaria Municipal da Saúde (SMS).
Para André Pessoa, médico neurogeneticista do Hospital Infantil Albert Sabin (HIAS), uma das hipóteses que explica a diminuição dos casos é a da imunização de massa. “As pessoas foram expostas ao vírus e desenvolveram anticorpos. Não sabemos se isso pode voltar, se haveria outra onda em algum momento”, afirma.
O problema, segundo ele, se dá quando o vírus passa por mutações genéticas e isso pode confundir o sistema imunológico dos seres humanos, retomando as infecções, como aconteceu com o coronavírus na pandemia da Covid-19.
“Provavelmente, mulheres férteis foram imunizadas quando eram mais novas e não houve variantes genéticas importantes no vírus da zika, mas isso pode acontecer. Assim como também pode vir outra geração que não teve contato com o vírus e estão suscetíveis”, diz.
O médico é um dos principais responsáveis pelo acompanhamento das crianças que nasceram com a Síndrome Congênita do Zika no Ceará. O Hospital Infantil Albert Sabin (Hias) é um dos equipamentos da Sesa que acompanha, atualmente, 40 crianças com microcefalia.
Os pacientes com microcefalia também recebem atendimento na Rede Especializada por meio das Policlínicas Regionais. O Núcleo de Estimulação Precoce (NEP) foi criado em 2016 e conta com uma equipe multidisciplinar, explica a Pasta. Para receber o acompanhamento na policlínica, o paciente precisa ser encaminhado pelo posto de saúde do município, ou transferido a partir de outra unidade de saúde.